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segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O nosso scenário orthográphico.

Os setores mais conservadores, e até nem conservadores assim, já começam a expressar sua indignação com a novíssima proposta de simplificação ortográfica que se discute no Senado (veja o resumo das consequências aqui  ou em outros artigos da grande mídia acessíveis na Internet).

Chama-me atenção o baixo nível da discussão suscitada: quanto menos se conhece do assunto e de suas implicações na educação, mais acentuada a reação contrária a qualquer mudança e mais bizarras as considerações sobre seus efeitos na língua e na educação. 


Pretendo esclarecer algumas questões básicas para, depois, discutir possíveis reformas ortográficas em bases mais sólidas e menos apaixonadas.




1. Ortografia não é língua

Uma foto, um retrato realista pintado por um artista, um retrato pós-moderno, uma caricatura, uma foto digitalizada por um desses aplicativos nas redes sociais, uma escultura, etc., são todas formas de se representar um indivíduo, mas nenhuma delas é o indivíduo retratado. Não se pode dizer que essas representações são uma pessoa ou mesmo que façam parte de uma pessoa.

Isso é óbvio, mas deveria ser igualmente óbvio o que todo linguista sabe: um sistema ortográfico não é a língua e nem faz parte da língua, que é um fenômeno oral (ou mesmo gestual). A ortografia é somente uma forma em que se convencionou expressar os idiomas, que já existiam bem antes do desenvolvimento da forma escrita (muitas dessas línguas, aliás, permanecem ágrafas). Em vez de decidirem escrever "casa" com c-a-s-a, poderiam ter optado por "caza", "kasa", "kaza", "kz", ou mesmo um desenho de uma casa ou algo que nem se parecesse com uma (a propósito, a grafia de "casa" tampouco se parece com uma casa). 


Portanto, mesmo que se propusesse que "svambologdarzenwtl" fosse a nova forma de se escrever "casa", desde que a pronúncia atual se mantivesse, a língua portuguesa teria permanecido intocada


Conclusão: essa proposta não pretende mudar a língua, só sua ortografia oficial.




2. Os brasileiros não pronunciam errado e 
não querem destruir o idioma

Além de não se "destruir" um idioma com uma reforma ortográfica - pois, como explicado acima, ortografia não faz parte da língua -, até hoje só se estabeleceu uma única lei universal na ciência das línguas, e essa lei, baseada na observação, afirma que as que as colônias, devido ao afastamento do centro, são linguisticamente mais conservadoras do que as metrópoles.

Ou seja, países como Portugal, Espanha, França e Inglaterra tendem a ser bem mais inovadores na gramática e na pronúncia do que suas colônias ou ex-colônias. No caso do inglês, para quem domina o idioma, recomendo, para ilustrar, esse artigo do Daily Mail e esse breve paper no Slideshare. Quanto ao português, reproduzo breves trechos da longa e elucidativa palestra de Evanildo Bechara quando da comemoração dos 500 anos da Descoberta:




...Este ritmo vocabular e frasal ainda atual no Brasil, sem que as vogais átonas sejam absorvidas ou "engolidas" como fazem, em geral, os portugueses, é marca registrada da língua dos nossos colonizadores no século XVI

... especialmente lembremos Luís de Camões; os versos de Os Lusíadas lidos pelo poeta como de dez sílabas métricas, também o são na pronúncia geral do Brasil e, não sem razão, o saudoso lingüista e filólogo patrício Sílvio Elia, o considerava o primeiro poeta brasileiro. A um português de hoje, os mesmos versos poderão parecer metricamente mal elaborados; era o que pensava Antônio Feliciano de Castilho ao ler Camões com pronúncia lusitana do século XIX....Esta identidade relativa entre a observação de Fernão de Oliveira sobre o ritmo cadenciado do português do século XVI e a pronúncia normal brasileira que evita a síncope das vogais e sugere ao ouvinte uma pronúncia mais lenta se explica pelo conservadorismo à língua transplantada: o português do Brasil não conheceu as mudanças que o português europeu experimentou depois do século XVI: a intensificação da sílaba tônica que favoreceu a queda de vogais átonas; a mudança de e fechado a a fechado em contacto com fonema palatal: beijo — bâijo; espelho — espâlho; bem — bãi (rimando mãe com também).

... Conclui-se que a língua que chegou ao Brasil pertence à fase de transição entre a arcaica e a moderna, já alicerçada literariamente...

Essa classificação do português brasileiro segue o seguinte referencial, também exposto na palestra:



a) português arcaico: século XIII ao final do XIV;

b) português arcaico médio: primeira metade do século XV à primeira metade do século XVI;

c) português moderno: segunda metade do século XVI ao final do XVII (podendo-se estender aos inícios do século XVIII);

d) português contemporâneo: século XVlll aos nossos dias.


Isso quer dizer que nossa gramática - com muitos dos nossos supostos "erros gramaticais", que, muito frequentemente, não são erros de fato, mas arcaísmos - e a nossa pronúncia advém do português entre a fase "b" e "c", com as contribuições nacionais que o tempo, o isolamento e a imigração propiciaram, enquanto Portugal avançava para a fase "d". 


Conclusão: os brasileiros, americanos, etc., não destruíram os idiomas que herdaram dos colonizadores. Se fizemos alguma coisa foi, mais do que os europeus, preservá-los! Isso é o que diz a ciência. 




3. Quem começou a mudar a ortografia foram os portugueses

A primeira reforma ortográfica foi feita por Portugal, em 1911. Até então, procurava-se preservar a escrita conforme a raíz etimológica das palavras (ph, rh, y, etc., com origem na escrita latina ou grega - e não na língua latina ou grega, é bom lembrar). O governo republicano português da época propôs que a ortografia etimológica cedesse lugar a uma que espelhasse mais a fonética, facilitando, com isso, a universalização da alfabetização.

De início, O Brasil se negou a adotar essa reforma, só começando a dialogar com a ex-metrópole sobre o assunto mais de uma década depois, o que culminou em um acordo preliminar entre os dois países somente em 1934.  


Conclusão: não fomos nós que começamos com essa história de reforma ortográfica. Foram os portugueses! 



Dados os 3 esclarecimentos acima, vamos às considerações sobre reformas ortográficas e, para isso, irei inicialmente dividir o assunto em "acentuação gráfica" e "letras":




1. Acentuação gráfica


Costuma-se reclamar das regras de acentuação gráfica do mais recente acordo aprovado devido a sua alegada incoerência. Mas o fato é que o verdadeiro problema não está nas novas regras em si, mas na própria existência da acentuação gráfica!

Explico: as regras de acentuação gráfica dependem do conhecimento prévio da pronúncia de cada palavra. Elas não determinam essa pronúncia. Ou seja, se eu tivesse deixado de acentuar "não" ou "pronúncia" na oração anterior, essas palavras não seriam pronunciadas "náo", ou "pronuncía", como a maioria das pessoas presume. Elas seriam pronunciadas como já são na fala diária.

O que a regra de acentuação gráfica determina não é a pronúncia, mas, com base na forma como se pronunciam as palavras "não" e "pronúncia", se se deve ou não acentuá-las graficamente. Só isso! Mas isso significa que, para escrever qualquer palavra, eu teria de consultar as regras, uma a uma, e verificar se se aplicariam a cada palavra em questão! No caso de "Elas não determinam a pronúncia das palavras", por exemplo, eu teria de fazer a checagem de cada uma das regras de acentuação para cada palavra grafada:

"Elas": 


1. É proparoxítona? Não. 
2. É paroxítona? Sim. 
3. É terminada em R, X, N, L, etc...? Não. 
4. É oxítona? ...

"Não": 


1. É proparoxítona? Não. 
2. É paroxítona? ...

E assim por diante, até o último termo da oração. E o mesmo depois para a oração seguinte ("Ou seja, se eu...") e assim por diante até o final do texto. 


Eu faço isso? Não.

Você faz isso? Não.

Os gênios que inventam e reinventam as regras de acentuação e as defendem com unhas e dentes fazem isso? Também não.

Por que não? Creio que eu nem preciso responder!

Então, o que fazemos todos nós? Acentuamos com base na memória visual e na generalização por comparação. Quem costuma ler tem na memória visual a acentuação de "são" e "não", por exemplo, que são palavras de alta frequência na língua. Daí, por comparação, sabemos que qualquer palavra terminada com o som de "ão" terá o til, exista essa palavra ou não na língua portuguesa: "aão, bão, cão, dão, eão, fão, gão, ...", que é o que fizemos com "renderização", neologismo de origem inglesa, etc. 


É por isso que memorizar as regras de acentuação é inútil, pois, na prática, elas raramente são aplicada de fato. O que vale mesmo é a memória visual e sua generalização por comparação. Por essa razão, quanto mais o indivíduo lê em português, menor a probabilidade de errar a acentuação gráfica. No meu caso, como, há anos, tenho um contato muito maior com textos em inglês do que em português, tendo, hoje em dia, a ficar em dúvida quanto à acentuação (e a grafia em geral) com muito mais frequência do que antigamente (e nem me preocupo em começar a escrever "ideia" sem o acento). 


Fazendo uma comparação: não existe uma versão do Windows melhor do que outra; todas vão dar problemas na hora de usar! O que o usuário do Windows sai ganhando, ao trocar um Lixows Vista por um Lixows 7 e esse por um Lixows 8, é a praticidade de não haver grandes mudanças entre uma versão e outra (e, quando tentaram uma mudança radical, tirando o menu Iniciar do canto esquerdo inferior da tela do Lixows 8, tiveram que criar uma atualização resgatando a estética anterior só para respeitar os hábitos arraigados dos usuários antigos).   


Igualmente, os lusófonos do mundo inteiro precisam perceber que, racionalmente falando, não existe um sistema de acentuação gráfica realmente melhor do que outro. A acentuação gráfica é o Windows. A não acentuação gráfica é o Mac. Mas, se a intenção é mantê-la, que ela mude o mínimo possível e que as mudanças sejam somente oficializações de hábitos generalizados (como no caso da abolição voluntária do trema), ou os "usuários" perderão a confiança em suas memórias visuais, tendo de desenvolver novas memórias que, só muitos anos depois, darão frutos no processo de generalização por comparação. Mas, ao que parece, será então, quando o sistema estiver se estabilizando, que os "gênios" virão com novas regras e o processo se iniciará mais uma vez (a propósito, reiniciar lembra Windows ou Mac?).





2. Letras


Existe um mito de que a ortografia do português seria totalmente fonética. Em outras palavras, que, diferente do inglês, por exemplo, "a gente lê como se escreve". Esse é um grande engano, e muito maior quando falamos da pronúncia dos lusitanos se comparada à nossa, já que, como explicado por Bechara acima, eles tendem a "engolir" as vogais átonas, enquanto nós tendemos a pronunciá-las mais claramente. E, em ambos os continentes, o "L" tem som de semi-vogal no final de sílabas ("mal" rima com "mau"), e o "m" final pode virar um "u" ou um "i" nasal (como em "moram" e "também"), além de alterações das vogais átonas (no caso do Brasil, do Rio de Janeiro para cima), como em "buneca" (boneca), "bunitu" (bonito), "izami" (exame), etc.


A ortografia do português é, na realidade, uma mistura de etimologia e fonética. Aproximá-la da fonética e afastá-la da etimologia foi a proposta portuguesa de 1911 e é o que propõe a tal "simplificação" em questão. Não aceitar os consequentes "oje" (para "hoje"), "omem" (para "homem") e "qeijo" (para "queijo") só é admissível se advindo de um "etimófilo" radical, que porém, e incoerentemente, não costuma exigir o retorno do "ph" em "farmácia" ou do "sc" em "cena".

Tampouco agrada a mim ler palavras "oje", "omem" ou "qeijo", pois fico com a mesma sensação de estranhamento de quando faço uma busca em português no Google e ele me traz uma página da Wikipedia em galego
Mas isso é só um estranhamento momentâneo. Não seria difícil a quase ninguém se habituar a uma escrita que aproxima letras e fonemas. O difícil seria o contrário (como no meu radical exemplo de "svambologdarzenwtl" para a grafia de "casa").

O que deveria importar mesmo é determinar se haveria alguma vantagem em fazer isso. Eu acredito que sim e pretendo deixar isso claro abaixo.




Por que seria melhor uma simplificação ortográfica



Está científica e internacionalmente estabelecido que a forma mais eficiente de se alfabetizar crianças e adultos é utilizando-se a alfabetização fônica. Em sua forma mais completa, ela consiste em desenvolver a consciência fonêmica e fonológica do "letrando" e a relação entre fonemas e a ortografia estabelecida para uma língua.

O sistema fônico é mais eficiente mesmo na alfabetização de chineses - que não possuem um sistema ortográfico - , e, logicamente, tende a ser ainda mais eficiente e sobretudo mais rápido quanto mais fonética for a ortografia adotada: quanto mais irregular a grafia, mais longo tenderá a ser o processo de alfabetização/letramento, mesmo com o método fônico. E, logicamente, o sucesso na alfabetização tenderá a ser menos dependente do sistema fônico quanto mais fonética for a ortografia adotada (o que seria ótimo, já que o método fônico não se destaca por ser muito lúdico).


As pessoas costumam apontar o vergonhoso resultado brasileiro no
Pisa como uma evidência do caos do sistema educacional brasileiro. Apontam também a Finlândia como um exemplo a ser seguido. Incrível é que se ouça e leia esse tipo de consideração advindo das mesmas pessoas que são contrárias à simplificação ortográfica, já que o grande trunfo da Finlândia - e possivelmente da Estônia também - não é exatamente o sistema educacional, ao contrário do que se disseminou, mas a simplificação ortográfica. A língua finlandesa possui 38 fonemas e exatos 38 morfemas: a ortografia é absolutamente regular! 

O resultado é que uma criança finlandesa, após a simplificação, é alfabetizada, em média, em apenas 6 meses! Não me estenderei (tive de confirmar no Conjuga-me se é "estender" ou "extender") na análise, mas quem sabe ler em inglês e se preocupa com educação básica deveria mergulhar nessas três referências: nesse artigo, nesse blog e nessa análise do blog


Em vez de conservadores ou progressistas, que tal nos preocuparmos em ser um pouco mais racionais?

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