Vimos, na primeira parte desta série, as alusões do Ministro Ernesto Araújo a autores esotéricos em "Trump e o Ocidente", artigo que escreveu para uma revista de relações internacionais e que Olavo de Carvalho utilizou como referência ao recomendá-lo ao cargo no Governo Bolsonaro.
É com base em conceitos esotéricos que também se ergue sua concepção de nação, como se verifica nesse trecho:
Fernando Pessoa ... dizia na Mensageur: '"As nações todas são mistérios. Cada uma é todo o mundo a sós"... [S]ua reação é justamente a tentativa genial de recuperar ou reinventar o nacionalismo mítico [...], refundar a unicidade profunda, multidimensional, transpolítica da nacionalidade ... 'As nações todas são mistérios': aqui, a palavra 'mistérios' pode se ler não só no sentido de enigma inescrutável, mas também de celebração e rito iniciático, de culto mistérico, como nos mistérios de Elêusis, e nesse sentido cada nação é também uma religião. [meus grifos]
Essas considerações reforçam o que foi dito na segunda parte sobre a acepção esotérica do termo "metapolítica" quando empregado pelo Chanceler. Como explicado então, metapolítica, nesse sentido, toma como princípio a existência de um "saber primordial comum a todas as civilizações", o que a tornaria, segundo seus defensores, a "expressão de uma ciência não profana, e sim sagrada", que "penetra no mistério escatológico da história" expressando "um projeto que [...] os homens retos esforçam-se de [sic] realizar na terra..."
É com esse pano de fundo que se deve ler as seguintes afirmações de Ernesto Araújo logo no início do referido ensaio:
[A]o lado de uma política externa, o Brasil necessita de uma metapolítica externa, para que possamos situar-nos e atuar naquele plano cultural-espiritual em que, muito mais do que no plano do comércio ou da estratégia diplomático-militar, estão se definindo os destinos do mundo. Destinos que precisaríamos estudar, não só do ponto de vista da geopolítica, mas também de uma 'teopolítica'. [meus grifos]
Como já estabelecido, se essa "teopolítica"/"metapolítica" tem como base uma concepção esotérica, então se faz necessário compreender como ela se articula até chegar à proposição de um nacionalismo que, mais do que o termo sugere, é também, e mais essencialmente, um "culto mistérico" e segundo o qual cada nação "é também uma religião".
Para tanto, não se pode cair no erro, que tem se tornado muito comum, de tomar as idéias de Ernesto Araújo, ou de Olavo de Carvalho, entre outros, na mesma chave com que se recebem as intervenções da Ministra Damares Alves ou de Iolene Lima. Leo Strauss, com seu Perseguição e a Arte de Escrever e suas considerações sobre as reais crenças de Maimônides, já deu rigor acadêmico à compreensão de como o discurso esotérico se camufla em uma nuvem de aparente religiosidade convencional.
É preciso atenção para não se deixar levar pelos símbolos linguísticos cristãos quando utilizados por pensadores gnósticos que se dizem defensores ou representantes da "fé cristã", sobretudo quando eles mesmos fazem referência a autores esotéricos como base de seu pensamento.
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O Ocidente cristão herdou da Antiguidade grega o conceito que se convencionou chamar de A Grande Cadeia do Ser. Essa Grande Cadeia seria a hierarquia que, iniciando-se no Ser Supremo - a origem de todos os seres e de toda a possibilidade de existência -, desceria, passando pelos deuses (ou anjos, na classificação cristianizada) e chegando até os homens, animais e minerais (existe um clássico de Arthur O. Lovejoy, publicado pela Harvard University Press, a respeito).
Em consonância com o que apresentam as Escrituras, essa Grande Cadeia do Ser foi assimilada pelo Cristianismo como apresentando o Deus Criador no topo e, abaixo, os seres por Ele criados mediante Sua Vontade soberana.
Os gnósticos, no entanto, mantiveram uma perspectiva mais próxima da neoplatônica, mesmo que eles se apresentem exteriormente como defensores do Cristianismo.
De forma geral e muito simplificada, pode-se dizer que eles concebem a Grande Cadeia do Ser tendo, em seu topo, o Uno Transcendente Supra-Individual do qual emanariam - surgiriam espontaneamente, por assim dizer - deuses dos quais, por sua vez, "emanariam" ainda outros, em quantidade sempre crescente, até que, por fim, teríamos a realidade sensível na qual vivemos de forma mais imediata.
Um povo, uma nação, seria, portanto, mais do que uma coletividade humana com vínculos históricos, culturais, linguísticos ou étnicos entre seus membros. O modo de ser, agir ou pensar associado a um tipo nacional seria a manifestação sensível das possibilidades ontológicas contidas potencialmente na divindade arquetípica da qual essa nação mais imediatamente emanaria. Por essa razão, cada membro dessa nação teria de buscar a realização dessas possibilidades. Essa seria a finalidade, o "telos" de sua existência.
É dessa metafísica que advém a "metapolítica" que embasa o nacionalismo gnóstico. E é só munido desses conceitos que se pode compreender as palavras de Fernando Pessoa, ecoadas por Ernesto Araújo, sobre cada nação ser como um mistério, o que incluiria, no detalhamento feito pelo atual Ministro, também um "rito iniciático", um "culto mistérico" e "uma religião". Realizar, atualizar esse arquétipo nacional seria, segundo essa perspectiva, mais do que expressar uma "cultura", mas rigorosamente o cumprimento de um rito, o viver em consonância - e, consequentemente, em "ressonância" - com a divindade que deu origem a uma dada nação.
Ainda nessa concepção, os anjos - equivalentes semíticos dos deuses, segundo os esotéricos - seriam mais do que "entes" espirituais criados por Deus. Eles seriam "níveis da realidade". Seriam "estados" e, ao mesmo tempo, "seres supra-individuais".
[C]asi todo lo que se dice teologicamente de los ángeles puede decirse também metafisicamente de los estados superiores de ser.
Já
notamos que quase tudo o que é dito teologicamente dos anjos pode ser dito
metafisicamente dos estados superiores do ser.
A propósito, alguns leitores devem se lembrar que, em 2015, nos artigos "A Igreja Humilhada" I e II, o pensador e, é importante lembrar nesse contexto, também astrólogo Olavo de Carvalho defendeu que a recuperação da Igreja Católica só seria possível através do anterior resgate da "cosmologia medieval".
Vejamos o que Guénon - que "fez a cabeça" do Olavo e de Araújo - diz no trecho seguinte àquele reproduzido logo acima:
Já notamos que quase tudo o que é dito teologicamente dos anjos pode ser dito metafisicamente dos estados superiores do ser, assim como, no simbolismo astrológico da idade média, os “céus”, ou seja as diferentes esferas planetárias e estelares, representam estes mesmos estados, e também os graus iniciáticos aos quais corresponde sua realização; e, como os “céus” e os “infernos”, os Dêvas e os Asuras, na tradição hindu, representam respectivamente os estados superiores e inferiores em relação ao estado humano.
Veremos, na 4ª parte, a aplicação dessa "metapolítica" gnóstica à ordem política internacional.